sexta-feira, setembro 21

ligação

Sentiu a gota descer a face, chegar no queixo, deixou que caísse e fez-se o silêncio. Escutou com atenção o barulho chegando no chão, se certificou que do outro lado da linha ela tenha ouvido também. Fechou os olhos lentamente, deitou o rosto sobre a mão, e colocou com calma o telefone no gancho enquanto os seus últimos soluços eram ouvidos.

***

Confiante, foi até o telefone. Um pé depois o outro, rugindo sobre o chão, riscando o caminho sem motivos, era tudo inevitável e não haviam voltas. Não ousou olhar o aparelho, apenas segurou, discou oito números. Pra final feliz do seu objetivo e infelicidade pessoal, do outro lado da linha atenderam.
- A Julia, por favor, a Julia está?
- É ela. Quem é?
- Julia! Oi, bem, sou eu...
- Ah, tu.
Ouviu a respiração dela, parecia impaciente apesar de calma, conseguia ouvir o som das palpebras repetidamente, o tique que ela tanto odiava, mas que despertara várias vezes seu desejo naqueles meses em que estiveram juntos. Continuava linda, ouvia pela voz do outro lado da cidade, a pequena Julia ainda tinha o encanto que tanto procurou em outros por aí, que nunca encontrou.
- Fala.
- Oi? Ah, sim... Sabe o que é, Julia...
- Sei.
- Sabe o quê? Eu nem falei nada, eu tava dizendo quê,
- Eu sei, eu sei, mas fala logo.
- Tu tá ocupada?
- Não, mas posso ficar daqui a pouco. Fala.
- Não, é que sabe, sei lá, faz tanto tempo e tudo mais, eu queria saber, sabe, só saber mesmo, como vão as coisas, não sei, tá tudo bem com a tua mãe, teu irmão?
- Aham. Sei. Minha mãe tá bem. O Lucas também.
- Que bom, Júlia.
Por alguns instantes deixou que o silêncio permanecesse e ouviu a respiração dela, sentiu-se mais tranqüilo, no fim não era tão ruim falar com ela depois de tanto tempo, tantas brigas, afinal a antiga afinidade que tinham ainda se mantinha.
- Era só isso? Então tch,
- Não, espera, espera. Tá todo mundo bem mesmo? A tua mãe, digo, ela vai bem, e a diabetes, tá bem?
- Tá bem melhor, ela tá ótima, super feliz.
- Mesmo, Julia?
- Quer falar com ela? Ô MÃE, VEM AQUI.
- Não precisa, não precisa, oi Dona Ana, tudo bem com a senhora?
- Tudo sim e tu, meu anjo, como que vai a vida? Não liga mais pra gente.
- Aqui vai bem, Dona Ana, ando meio ocupado.
Dona Ana sempre carinhosa, quisera tantas vezes que Julia tivesse herdado não só o charme, mas a doçura da mãe. Pretenção de mais, sabia, mas sempre quisera.
- Passa pra Julia, Dona Ana? Precisava, quer dizer, queria falar com ela. Passa pra ela?
- Claro, meu anjo, já passo. JUUUULIA, querida, pega aí o telefone.
Ouvia para alívio próprio a voz dela chegando mais perto.
- Ainda tá aí? Já disse, tá tudo bem aqui. Não era só isso? Que tu quer?
- Tá brava comigo, Julia?
- Não é nada disso. Olha, desculpa ser grossa, mas pra que tu ligou?
- Nada. Eu só...
- Só o que?
- Queria saber como vai tua vida, tuas coisas, teus...
- Não, eu não to namorando. Larguei a faculdade, vou fazer direito. Comprei um cachorro. Tô ótima.
Ótima? Acabara de ouvir que iria fazer direito, logo direito, e ainda achava que cabia na mesma frase em que assumia tal ato um "tô ótima". Talvez a velha Julia tenha mesmo perdido o seu brilhantismo por aí, como ouvira dizer.
- Direito? Legal.
- Aham.
- É.
No fim a Julia também tinha conseguido tocar a vida. Os dois tinham conseguido, os dois viviam bem, mas ele ainda sentia que faltava algo, algo que talvez tivesse ficado nela. Lembrou de quando iam ao teatro nos domingos, dos sorvetes que dividiam, dos sorrisos que dava ao vê-la vindo no portão...
- Tá, e aí? Vai ficar no telefone a noite toda?
- Por quê?
- Porque já faz tempo que tu ligou e ainda não disse nada com nada.
- Tem compromisso?
- Não, não sei, talvez.
- Ah.
- Tem mais alguma coisa que tu queira saber?
Poderia ter dito que ainda via ela como antes, ainda sentia seu cheiro quando chove, que vive pensando nela, que as pessoas não tem mais a mesma cor, que não consegue mais comer sorvete porque o gosto ficou amargo, e existem dias que parecem que nem existem só pelo sentimento da distância, que na verdade é inventada. Mas ao invés disso segurou com força o telefone e terminou a conversa.
- Acho que não.
- Tá, então tá.
- Tá.
- A gente se fala.
- É.
- Então tchau.
- Tchau.
Julia ouviu um barulho estranho, mas jamais se perguntou do que tratava, e nem achou que tivessem importância os soluços baixinhos do outro lado da linha.

3 comentários:

Renan Ramiro disse...

Julia é rude e frígida.
Ela sou eu, eu é ela...

Eu gostei Luisa! Em particular da parte do sorvete que ficou amargo. Isso é tão bolero!

Andiara Moraes disse...

tb gostei do teu :)
e muito obrigada pelos elogios! tô tããão feliz! heheh

um beijão!

Nadezhda disse...

As Júlias são tão comuns ;)