domingo, agosto 26

nina quer o meu amor

- Eu sou uma idiota mesmo. - Ela disse, e disse na esperança de que eu negasse a afirmação. Não se perde uma oportunidade como essa, de finalmente dizer a Nina o que está entalado na minha garganta a meses.
- Não é verdade. Você não é idiota.
Ela escuta com atenção, começa a corar, eu a sorrir:
- Na verdade, você é MUITO idiota. Uma idiota completa.
Sei que Nina esperava mais de mim, mas não me importo mais com o que ela pensa. E esperava que eu a abraçasse e dissesse como é importante pra mim estar com ela nesse momento, como eu quero voltar no tempo, como eu ainda a amo e como quero tê-la junto a mim novamente. Eu não quero tê-la junto a mim novamente. Ainda a amo, é verdade, mas definitivamente não a quero mais. Não se deixa as pessoas voltarem pro seu coração quando elas o quebraram, a menos que elas tenham um bom motivo, e Nina não tem. Nina só quer o meu amor de volta porque os dois anos em que estivemos juntos eu a tratei como uma princesa. Saíamos sempre, estávamos sempre rodeados de amigos e por mais que ela tentasse me agradar, eu sempre estava um passo a frente com uma surpresa mais interessante pra ela. Me pergunto se algum dia ela gostou de mim e não do modo como eu a fazia se sentir. Talvez eu tenha sido apenas um passatempo, mas não vou ser novamente, porque não vou pegá-la no colo agora que ela está sozinha, só porque se sente carente. Eu também tenho orgulho, e no final das contas quem está chorando arrasada do meu lado é ela, e quem está fazendo piadas sarcásticas sou eu.

sexta-feira, agosto 17

Cobaia 2

A - Tu te acha bonita?
B - Como?
A - Perguntei se tu te acha bonita.
B - Bom... eu...
A - Sim ou não?
B - Eu me acho um pouco.
A - A resposta é sim então?
B - Não, eu não me acho bonita, bonita mesmo. Só um pouquinho.
A - Logo, a resposta é não.
B - Não é bem isso, eu me acho meio-bonita.
A - Você não pegou a idéia. Vou fazer a pergunta de novo. Você se acha bonita?
B - Já disse... meio-bonita.
A - Qual lado seu é bonito?
B - Quê?
A - Você disse que é "meio-bonita", que metade sua é bonita?
B - Não, você não entendeu. Eu não tenho uma parte só bonita.
A - Ah! então você é toda bonita.
B - Não!
A - Entendi... Mas você não devia se sentir feia assim.
B - Não foi bem isso que eu disse, mas esquece. Ah, obrigada.
A - Esqueço. Obrigada pelo quê?
B - Pelo elogio.
A - Elogio? Escuta, não misture as coisas, eu só disse que você deveria se achar bonita, não que eu também a achava.
B - Escuta você, qual o propósito disso tudo?
A - Olha, têm aqueles que dizem que Deus gosta de brincar com marionetes. Têm pessoas que acreditam que o propósito da vida é ter filhos, outros é evoluir até virar uma vaca, varia muito, cada um tem a sua opinião.
B - Não!
A - Sim, realmente têm pessoas que acham isso.
B - Não, você não entendeu. Qual o propósito dessas perguntas?
A - Não sei, você que veio falando de filosofia, eu só perguntei se você se achava bonita.
B - Não é isso! Presta atenção: por que você me perguntou se eu me achava bonita?
A - Pra saber se você se achava bonita, o que mais?
B - Ai. Desisto.

(...)

A - Tu tá esperando o quê?
B - Um garoto.
A - Ele te deu um bolo.
B - Não, eu que cheguei cedo.
A - Ah, é? E que horas vocês marcaram?
B - Bem... Lá pelas quatro horas a gente tinha que se encontrar aqui.
A - E que horas são?
B - Não tenho relógio.
A - Quer que eu lhe diga as horas?
B - Pra quê?
A - Pra você saber que horas são, o que podia ser?
B - Olha, isso não é da sua conta.
A - Tá bom, mas já são cinco e quinze. Talvez você devesse ir pra casa.
B - Não são cinco e quinze ainda.
A - Como você sabe, se não tem relógio?
B - Eu só sei, tá legal?
A - Você é meio ruim com esse negócio de horas. Cinco e dezesseis.
B - Legal.

(...)

A - Bom, ele pode não ter te dado um bolo, propriamente dito. Pode ter acontecido algo.
B - É verdade, foi o que eu pensei.
A - Em todo caso, você deveria ir pra casa.
B - Eu faço o que eu quiser, não se meta.
A - Claro, mas só digo que, se mesmo que eu tivesse me atrasado ou tivesse acontecido algo, eu não iria depois de uma hora e meia no encontro.
B - Bom pra você.
A - Ele pode ter sofrido um acidente, estar no hospital. Em todo caso é mais fácil você ficar em casa e assistir o jornal na teve, sempre aparecem as pessoas que morreram no trânsito.
B - Ele não morreu.
A - Como você sabe?
B - Eu sei que não morreu.
A - Sempre que você diz isso está equivocada. Eu penso que ele morreu sim. Ou está no HPS sendo operado, morrendo de dor, com os rins pra fora, um pulmão cortado e duas costelas fraturadas, nesse momento o médico deve estar tentando salvar uma das pernas, devem estar colocando ele em coma induzido pra não sentir tanta dor... Hei! Por que você está chorando?

(...)

sábado, agosto 11

Bloco do neelic*

Foi logo antes do meu irmão nascer. Eu tinha só sete anos, uma mania estranha e uma paixão.

***

Sete anos todo mundo já teve um dia, não tenho nem o que falar sobre isso, e na verdade eu sempre fui uma criança normal, não há nada que a definição da idade não esteja abrangendo. Eu tinha também uma mania. Uma mania nem tão estranha assim, mas nunca conheci quem a tivesse, então considero minha. Minha mania se resumia em lavar o banheiro. Pode parecer sem graça, mas eis a explicação: eu e meus sete anos sempre que entravámos no banho sentiamos uma tentação enorme, logo depois que me ensabuava. Eu acabava sem perceber lavando as paredes. Qualquer malícia que possa aqui ser imaginada deve ser dispensada, pois eu era uma criança e não pretendia deixar de ser por bons anos seguintes. Pegava então o sabão, a esponja da minha mãe (se ela soubesse...!) e começava a ensabuar determinadamente o box. Mas não era mais um box, eu me imaginava numa manção enorme, onde eu era a dona de tudo e a empregada estava de folga, então me submetia aos seus trabalhos para manter a casa limpa. E eu lavava tudo com muito empenho, ra com certeza a mais esforçada das lavadoras de box. Logo o chuveiro se transformava numa lâmpada e eu me punha a trocá-la, já que a maldita queimava sempre. Essas e outras atividades do lar me causavam boas horas no banho me divertindo. Custumava sair contente, enrolada na toalha, com uma alegria enorme por ter terminado meu trabalho. Minha mãe nem meu pai nunca souberam que eu era tão excelente faxineira, e também se soubessem me poriam a trabalhar em casa, o que não era meu programa predileto.

E foi nessa época em que veio a paixão que falei antes. Era meu primeiro amor, e primeiros amores nunca se esquecem. O nome dele era Marcos. Eme. Recem tinha aprendido a escrever e criei o hábito de chamar as pessoas pela primeira letra. Claro que não funcionava muito, pois eu conhecia um punhado de gentes com as mesmas letras iniciais. Mas não desisti. Por isso Marcos pra mim era Eme, e eu própria, Joana, era Jota. Senhor Eme e Senhora Jota. Sempre escrevia isso no meu caderno, enxia de corações em volta e eu e todas minhas amigas davámos risadinhas. Eme nada sabia de minha paixão, embora eu seguisse ele todos os recreios. Eme era lá do meu colégio, mas era dois anos mais velho e sequer sabia que eu existia. A verdade era que eu tinha notado ele em outro lugar, não no colégio, pois o pai de Eme era do meu prédio, meu vizinho de cima, um fulano de tal que sempre jogava cartas com meu pai e um dia acabei vendo que ele também tinha um filho.

Nesses tempos meus dias se resumiam em escrever cartas para Eme, que nunca eram enviadas, e em ir para escola seguir Eme no recreio. Fiquei obsecada, minha mãe começou a estranhar e volta e meia me perguntava o que eu tinha. Até que eu disse "Mãe, estou amando", ela falou rindo "Amando, filha? Mas tu só tem sete anos", fiquei pasma com a resposta. Como assim eu só tinha sete anos? Então com sete anos não se ama? Eu tinha vontade de dizer que o que eu sentia era amor sim, que amor também era coisa de criança, que dava pra sentir, pra se emocionar, pra chorar. Resolvi fazer alguma coisa para provar para minha mãe que crianças também amam. Nessa época estava convencida de que ele também gostava de mim mas mantinha segredo, e resolvi me declarar. Pensei durante três dias, e pra uma criança de sete anos três dias era muito tempo. Resolvi que iria fazer algo que não fosse esperado. Foi aí que tive a idéia infeliz de mandar uma das tantas cartas que eu escrevia, decidi que aquela infelicidade sem Eme na minha vida não era suportável. Me esforcei, não podia ser mais fácil sofrer do que ser feliz. Perdi muito tempo escrevendo e reescrevendo a carta, rasgando cada vez que um dos dez corações que eu desenhava saia torto. A carta tinha poucas palavras, dizendo apenas isso "Também te amo, devemos juntar nosso amor. Me encontre no balanço verde quarta-feira no recreio. Com amor, Jota.", e mandei para um amigo de uma amiga minha que era da mesma turma que ele e garantiu que tinha entregue em mãos o papel.

Na quarta-feira antes de ir para a escola me arrumei toda, fui até o espelho e rezei. Não custumava rezar muito, era adepta aos que não gostam de encomodar Deus, mas era um caso urgente. Pedi pra ele em voz alta "hoje eu quero parecer bonita". Depois fui pro colégio acreditando que Deus tinha me ouvido e eu estaria bonita. Eu queria de mais estar bonita, Deus não me deixaria na mão, eu tinha certeza. Durante a aula fiquei ansiosa, me preparava para o momento do encontro. Finalmente ele chegou. Fiquei muito tempo no balanço verde. Não tinha ninguém ali, ninguém nunca ia ali e por isso era um lugar perfeito para um encontro. Mas naquela tarde minha colega Julia também quis andar de balanço, tentei expulsar ela do lugar mas a menina insistiu que queria muito andar no brinquedo. Deixei que ela ficasse, afinal Eme e eu podiamos ir para outro lugar depois. Mas o recreio vinha acabando e Eme não chegava. Me desconsolei, resolvi que Deus era mau e tinha me deixado feia, e por isso ele não tinha ido. Fiquei furiosa. Me levantei e segui rumo a aula com passos largos e fortes. Antes de sair do pátio olhei para trás, esperançosa. Vi com atenção que Eme tinha chegado, meio atrasado, mas chegado. Pensei que tudo bem, o amava e podia perdoar seu atraso. Comecei a correr ao encontro dele, desesperada, louca para abracá-lo. Mas ao chegar perto de Eme vi que ele falava com Julia. Vi então eles juntarem as mãos e sairem juntos. Entrei em pânico. Naquele momento me dei conta que Julia também era a Senhora Jota. "Jota de Julia", eu disse em voz alta, enquanto os dois sumiam pelo colégio e as primeiras lágrimas escorriam pelo meu rosto.

***

Meu irmão nasceu uma semana depois. Todas as lágrimas foram esquecidas, fiquei tão encantada com a nova criança, que esqueci o amor perdido. Meu mundo não era só terrores, pois eu tinha, literalmente, uma nova vida nas mãos.

ps: qualquer semelhança é mera coinscidência.
* Neelic - Núcleo de Experimentação da Linguagem Cênica